O verbete Ênio Silveira na Wikipédia – enciclopédia virtual caótica, injusta como todo caos e por vezes equivocada – fornece míseras duas linhas que viram três numa folha de papel. Ou seja, exatamente isto: ‘Ênio Silveira, (18 de novembro de 1925 – 11 de janeiro de 1996) foi um editor brasileiro e militante do Partido Comunista Brasileiro. Dirigiu por muitos anos a editora Civilização Brasileira. Sob a ditadura militar, editou numerosas publicações de oposição ao regime’.
Continue reading
História curiosa entre muitas da apropriação de produtos culturais de nações periféricas por nações industriais é a da música sul-africana Mbube (leão em zulu), composta quase por acaso por Solomon Linda do Solomon Linda & The Evening Birds, no começo de 1939. Linda e seu grupo gravaram uma canção num lado de um disco 78 rotações no Gallo Studios em Joanesburgo (único da África) e o produtor Griffith Motsieloa alertou que precisava outra para o lado B. Linda não tinha. Também não tinha tempo. E improvisou uma canção de infância. Quando pequeno pastor ele temia a presença de leões. E cantava algo sem nexo cujo objetivo era espantar o eventual leão: ‘Ei leão, você é um leão’. Em zulu ficava legal. No fim da gravação, sapecou uma frase: ‘Na poderosa selva, o leão dorme esta noite’.
O pessoal de apoio improvisou o coro e a coisa foi gravada. A matriz foi enviada a Londres e quando os alemães invadiam a Polônia, na Europa, a música chegou Pretoria, Soweto e Joanesburgo. Havia poucas rádios negras em 1939 e a música foi divulgada nos subúrbios de boca em boca e tocada por estações comunitárias. Foi um estouro. Virou o maior sucesso na África do Sul, ainda sob domínio inglês. O disco vendeu 100 mil cópias até 1948, o que não é pouco nem hoje. Imagine nos dias de antanho. A matriz ficou um farelo de tanto gravar. Linda arrecadou 10 shillings, algo em torno de US$ 2, com a venda dos direitos autorais para Eric Gallo, ítalo-americano dono do estúdio.
Solomon Linda veio do vale Msinga para a cidade grande, ser cantor. Morou em favelas, pegou trabalho braçal, acabou morrendo na miséria em 1962, aos 53 anos. A sua canção se tornou talvez o maior produto musical da África para o resto do mundo. Contando assim dá a impressão de que Linda era um Zé Ruela. Não era. Ele sabia o que fazia. Se não foi reconhecido em vida e devidamente remunerado são outros quinhentos. Mas soube incluir uma série de inovações na tradição zulu. Botou voz principal em falsete, a textura vocal feminina na voz de homem, como os castrati do século 16. O grupo dele foi o primeiro a usar ternos listrados numa demonstração de que podiam ser pobres, mas tinham concepção urbana e sofisticada. Linda também foi cantor de protesto a refletir a humilhação crescente dos negros em seu país. Linda continuou pobre e cantando até morrer. Mas Mbube teria bela jornada pela frente.
A música ficaria como joia musical perdida na história não fosse o musicólogo americano Alan Lomax descobri-la no começo dos anos 50. Lomax e seu pai garimpavam músicas nos lugares mais improváveis e descobriam mestres do blues como Leadbelly e Muddy Waters. Lomax estava na gravadora Decca e resgatou num depósito alguns discos de uma obscura gravadora africana, enviados para os EUA na esperança de alguém se interessar. Mbube o fascinou e ele e mostrou a Peter Seeger, por sua vez um dos pioneiros da música de protesto nos EUA. Seeger era líder do The Weavers, grupo folk que estourou em 1950 com Goodnight, Irene, de Leadbelly, apresentada por Lomax.
Embora descendesse de família rica de Nova York, Seeger estava na pior em Greenwich Village nesta época, com mulher e dois filhos. Ele deixara Havard para pegar a estrada com um banjo e pesquisar música folclórica americana. Pois bem! Quando ouviu Mbube ele gostou, mas empacou na expressão zulu que soava para ele algo como uyembue. Ele achou que os caras queriam dizer wimoweh. Se ele achou estava achado. Botou banjo e elementos folks na canção para torná-la menos crua aos ouvidos americanos, batizou a música de Wimoweh e correu para o abraço. A música estourou nos EUA em 1952. Seeger virou gente grande. Ganhou dinheiro e prestigio, mas, de repente, sumiu. O problema é quando Seeger pegou estrada para suas pesquisas, ele se enturmou com o pessoal de esquerda. Esse pessoal caiu no período da caça às bruxas comunistas e o entregou como cantor de esquerda. O dinheiro ganho com Mbube foi para a fita e Seeger voltou às vacas magras.
No começo dos 60 ele voltou a ganhar dinheiro com outras músicas como Turn, Turn, Turn, sucesso com The Byrds e Where Have All the Flowers Gone? sucesso com Marlene Dietrich e mais uma centena de cantores como Joan Baez. Seeger ainda está vivo por aí com seus 90 e poucos anos (este artigo foi escrito em 2010. Peter Seeger morreu em Nova Iorque em 27 de janeiro de 2014). No começo dos anos 60 – em 1961 – Mbube também renasceu. Agora com o trio Luigi Creatore, Hugo Peretti e o maestro George David Weiss. Eles mudam a letra, botam um estilo pop-rock, tambores e sinfônica e a música estoura novamente com o nome de The Lion Sleeps Tonight. A terceira versão a fez ainda mais conhecida no mundo inteiro inicialmente com The Tokens. Poucos sabem o que o Tokens andou fazendo além desta música, mas até hoje – bem velhinhos – eles ainda uivam The Lion Sleeps Tonight pelos palcos americanos.
A partir daí o bicho pegou. O leão, claro. Nos anos 60, 70, 80 e até hoje tem gente gravando Mbube. Seja na versão americana, seja na original. Tremeloes, Jimmy Cliff, REM e outros pegaram carona com os leões da África do Sul enquanto neste país Ladysmith Black Mambazo, Miriam Makeba e outros puxaram a sardinha para a versão original, não exatamente a de Solomon Linda, mas identificada com a sonoridade zulu em que o coro detém a primazia sobre os instrumentos. A música também andou por Hollywood fazendo trilha sonora em uma dezena de filmes de Ace Ventura ao animado Rei Leão, tornando-se um dos maiores hits do século 20, ouvido até hoje e talvez a peça sonora africana mais conhecida no mundo.
Muito bem! Aí o distinto pergunta: como ficaram os direitos autorais? Estima-se 160 gravações das três versões de Mbube. A zulu, a folk e a pop, presença em dez filmes e dezenas de comerciais. A música gerou algo em torno de US$ 72 milhões em direitos autorais. Deste total, US$ 15 milhões arrecadados na África.
A briga pelos direitos começou em 1989 em território americano. O grupo Richmond, que gravou a primeira versão americana, e o maestro George David Weiss foram para o pau. Um juiz de Nova York sentenciou que a versão de Weiss não tinha nada a ver com a original africana. Ele ganhou a parada. Os direitos da versão americana eram dele. No entanto, uma centenária lei inglesa sobre direitos autorais diz que os direitos de uma canção revertem para a família do autor 25 anos depois de sua morte. Baseada nesta lei, a Suprema Corte da África do Sul designou um promotor para recuperar os direitos para a família de Linda, da qual restam ainda três filhas – Delphi, Elizabeth e Philda – morando numa favela de Soweto, depois que a mais velha morreu de Aids em 2002. A Walt Disney, uma das maiores beneficiadas com a música, está sendo processada. Para não dizer que não receberam nada até agora, Seeger teria mandado um cheque de US$ 1 mil para as donas. Elas receberam ainda mais US$ 15 mil de outras fontes.
Depois de 18 anos sem nada para identificar o lugar em que Solomon Linda foi enterrado, as filhas conseguiram botar uma lápide no túmulo do pai. Linda, depois de adoecer em 1959, morreu em outubro de 1962 pobre e feliz porque sua música era conhecida no mundo inteiro. Sobre direitos autorais ele dizia: ‘Nem sabia que devia receber alguma coisa pela música’. Afinal, tinha vendido por US$ 2. É assim que funciona. Claro que todos os outros envolvidos nesta história, vivos ou mortos, ficaram milionários. Estes leões também dormem. Mas não de touca.
Publicado originalmente em O Estado do Paraná no dia 11 de abril de 2010.
Começou na semana em que Murilo Morillon encontrou Graciano Ramalho no Café Odeon. Era noite de quinta-feira e os dois conversaram amenidades enquanto saboreavam uns drinques especiais. Ramalho atacou de Planter’s Punch e Morillon se virou com um Jack Rose.
Por falta de assunto ele disse:
“Esta bebida era o coquetel preferido de John O’Hara.”
Ramalho deu um gole na bebida à qual Morillon se referia, concordou com um movimento de cabeça e observou:
“Este que você toma era o preferido de John Steinbeck.”
Morillon ignorou o comentário e prosseguiu:
“Ohara era um bêbado temperamental. Mas o cara tinha frases boas. Eu gosto da que ele disse que começava a beber numa quinta-feira e bebia tanto que no sábado já estava sóbrio. Acho isto senso de humor.”
Continue reading
Não sou muito chegado a literatura de Caio Fernando Abreu. Ele escreveu livros com nomes estranhos – “O Ovo apunhalado”, “Dragões não conhecem o paraíso”, “Morangos mofados”, “Pedras de Calcutá” e outras coisas que sugerem surrealismo, mas não são surrealistas. Sempre que tentei ler seus contos, me senti estimulado a fazer outra coisa. Não é culpa dele, nem minha: existem alguns elementos que levam um sujeito a gostar da obra de um escritor, mas os principais são dois. Um é de ordem emotiva e outro racional: o cara se identifica com o que está escrito ou ajudado por elementos canônicos conclui que aquilo é dez. Se tirar o cânone da jogada, podemos incluir outro elemento racional: a novidade, o revolucionário, que precisa ser bom para se firmar. Caso contrário, não funciona.
Continue reading
No longínquo ano de 1955 houve uma exposição em Paris para comemorar os 60 anos do cinema. Quando os representantes da delegação norte-americana chegaram ao Museu de Arte Moderna para conferir o evento deram de cara com um cartaz em que aparecia uma atriz norte-americana do cinema mudo chamada Louise Brooks. O pessoal não entendeu a honra conferida àquela moça e perguntou por que ela em evidência no cartaz e não divas consagradas como Greta Garbo ou Marlene Dietrich. O fundador e diretor da Cinemateque Française, Henri Langlois, respondeu, certamente com a suave e mortal empáfia de que só os franceses são – ou eram – capazes: “Não existe Garbo. Não existe Dietrich. Existe apenas Louise Brooks”.
Continue reading
EDILSON PEREIRA

Popular Posts
Archives
- January 2021
- December 2020
- November 2020
- October 2020
- September 2020
- August 2020
- July 2020
- June 2020
- May 2020
- April 2020
- March 2020
- September 2019
- March 2019
- September 2018
- July 2018
- June 2018
- April 2018
- January 2018
- December 2017
- November 2017
- October 2017
- September 2017
- August 2017
- July 2017
- June 2017
- May 2017
- April 2017
- March 2017
- February 2017
- January 2017
- December 2016
- November 2016
- October 2016
- September 2016
- August 2016
- July 2016
- June 2016
- May 2016
- April 2016
- March 2016
- April 2015
- January 2015
- March 2014
- February 2014
- June 2013
- April 2013
- December 2012
Categories
Tags
angustiado
babando de ódio
Beatles
Brasília
Budapeste
Buenos Aires
calcinha
capitalista
cerveja
circo
Copacabana
Coringa
Dalton Trevisan
diplomacia
edilsonpereira
Errol Flynn
expresso
futebol
James Joyce
Jeca Tatu
litoral
Londrina
Madrugada
maluco
marido
Maringá
Mbube
meretrizes
motel
Napoleão
narrativa
Natal
pai de santo
Paris
pesadelo
porteiro
Péricles Eugênio da Silva Ramos
Rick Blaine
Sexy
sorriso
Taquara
telefone
traficante
vaidade
Zé do Caixão