Edilson Pereira - Escritor e Dramaturgo
  • HOME
  • SOBRE
  • CRÔNICAS
  • OBRAS
  • TEATRO
    • A CIDADE E AS MOSCAS
    • BAUHAUS
    • FULANO, SICRANO E BELTRANO
    • MARCONDES É DO CACETE
    • OS CATETOS E A HIPOTENUSA
    • O SOM QUE SAM OUVIU
    • O HOMEM QUE DIZ NÃO
    • ROSBACH
    • UMA FAMILIA E UM NEGÓCIO
    • VOCÊ JÁ VIU A CHUVA CAIR
  • LIVROS
    • A LOIRA DO TÁXI NOTURNO
    • A GAROTA DA CIDADE
    • A DAMA DO LARGO DA ORDEM
    • A VELHA CIDADE PERDIDA
    • ESFÍNCTER
    • O HOMEM DO HOTEL CERVANTES
    • MATE MEU MARIDO, POR FAVOR!
    • NINGUÉM MATA POR AMOR
    • O PORTUGUÊS DOS OLHOS VERDES
    • UMA MULHER MUITO PERIGOSA
  • NOTÍCIAS
  • CONTATO
HOME
SOBRE
CRÔNICAS
OBRAS
TEATRO
    A CIDADE E AS MOSCAS
    BAUHAUS
    FULANO, SICRANO E BELTRANO
    MARCONDES É DO CACETE
    OS CATETOS E A HIPOTENUSA
    O SOM QUE SAM OUVIU
    O HOMEM QUE DIZ NÃO
    ROSBACH
    UMA FAMILIA E UM NEGÓCIO
    VOCÊ JÁ VIU A CHUVA CAIR
LIVROS
    A LOIRA DO TÁXI NOTURNO
    A GAROTA DA CIDADE
    A DAMA DO LARGO DA ORDEM
    A VELHA CIDADE PERDIDA
    ESFÍNCTER
    O HOMEM DO HOTEL CERVANTES
    MATE MEU MARIDO, POR FAVOR!
    NINGUÉM MATA POR AMOR
    O PORTUGUÊS DOS OLHOS VERDES
    UMA MULHER MUITO PERIGOSA
NOTÍCIAS
CONTATO
  • HOME
  • SOBRE
  • CRÔNICAS
  • OBRAS
  • TEATRO
    • A CIDADE E AS MOSCAS
    • BAUHAUS
    • FULANO, SICRANO E BELTRANO
    • MARCONDES É DO CACETE
    • OS CATETOS E A HIPOTENUSA
    • O SOM QUE SAM OUVIU
    • O HOMEM QUE DIZ NÃO
    • ROSBACH
    • UMA FAMILIA E UM NEGÓCIO
    • VOCÊ JÁ VIU A CHUVA CAIR
  • LIVROS
    • A LOIRA DO TÁXI NOTURNO
    • A GAROTA DA CIDADE
    • A DAMA DO LARGO DA ORDEM
    • A VELHA CIDADE PERDIDA
    • ESFÍNCTER
    • O HOMEM DO HOTEL CERVANTES
    • MATE MEU MARIDO, POR FAVOR!
    • NINGUÉM MATA POR AMOR
    • O PORTUGUÊS DOS OLHOS VERDES
    • UMA MULHER MUITO PERIGOSA
  • NOTÍCIAS
  • CONTATO
Edilson Pereira - Escritor e Dramaturgo
Crônicas

“I found my April dream”

foto3

            O nome era Valentina. Quando pensava nela eu a chamava mentalmente de Senhora Valentina. Uma mulher elegante. O marido era um homem que as pessoas do bairro de uma maneira geral consideravam distinto, bom e honesto. Ele me cumprimentava com um meneio de cabeça e sorriso como fossemos velhos conhecidos embora nunca tivéssemos trocado uma frase de conversa sequer em todos aqueles anos em que moro ali e que não eram poucos. Eles tinham uma bela casa próxima ao condomínio em que moro, no meio da quadra, depois da esquina. Uma casa grande e confortável. Tinham automóvel mas eu não sabia a profissão dele. O que me fascinava era o afeto que um tinha pelo outro. Iam ao mercado a pé, porque ficava perto de nossos lares, de mãos dadas e conversando como dois eternos namorados. Isto foi por uns dez a quinze anos. Sabia que tinham um filho. Até um dia, há três anos e meio, não vê-los mais juntos. Algumas semanas depois que isto aconteceu comentei com Armênia, a vizinha que tinha um labrador e que vez e outra encontrava nos passeios matinais com a cachorra nas ruas próximas:

            “Aconteceu alguma coisa séria com o Sr. Arnoldo. Eu não o vejo há várias semanas.”

           Ela disse:

           “Ele morreu!”

            Eu não sabia. E fiz expressão de espanto. Ela disse que um câncer repentino e agressivo apareceu e ele foi internado às pressas para uma cirurgia. O tumor foi extirpado, mas o procedimento não foi suficiente para conter a expansão da moléstia para outros órgãos próximos e ao fim de vinte dias ele não resistiu. Do hospital foi levado para uma capela ao lado do cemitério e os parentes foram convidados para a cerimônia de adeus ao Sr. Arnoldo. Armênia me disse que ele estava com cinquenta anos, o único filho se casou e a mulher tinha quarenta e cinco anos. Ela colocou a casa à venda. Queria comprar um apartamento porque a casa era grande para uma pessoa e no apartamento se sentiria mais segura. No entanto, os negócios imobiliários estavam parados há cinco anos por conta da longa e cada vez mais profunda crise econômica. Ela voltou a morar na grande casa. Depois disso eu a vi duas ou três vezes. Estou recordando tudo isto porque eu a vi hoje de manhã. À princípio não a reconheci. Era apenas uma mulher andando a esmo e oscilante, sozinha. Parecia bêbada.

            “Uma mulher andando sem máscara!”

            Era a terça segunda-feira de maio. As ruas estavam desertas. Como sempre desde o primeiro caso sai bem cedo para o primeiro passeio do dia com a cachorra. Sempre com chapéu marrom, máscara cirúrgica branca com válvula azul, casaco marrom longo, calça marrom de veludo, luvas negras e tênis branco. Não parecia haver vida naquelas casas da vizinhança. Ainda mais àquela hora. A minha expectativa era a cachorra defecar o mais rápido o que armazenou nas entranhas nas longas horas comendo ração dentro do apartamento para voltarmos. Mas ela tinha que obedecer aos instintos. E eles eram caprichosos. Ela cheirava tudo que via. O veterinário me disse que aquilo ajudava a relaxar e em seguida a defecar. Enquanto esperava que fizesse isso, a mulher no meio da rua veio em minha direção. A ausência de máscara me irritou. E quando estava a alguns metros eu a reconheci. Era a Senhora Valentina. E pelo jeito queria falar alguma coisa. Ela parecia implorar um abraço e aquilo me aterrorizou. Eu não podia abraçar ninguém. Ela percebeu meu receio, parou, hesitou, deu alguns passos.

            Ela se aproximou de disse:

“Maldito vírus. Esse vírus maldito!”

         E começou a chorar. Eu não sabia o que dizer. Ainda bem que eu estava de máscara. E com máscara o rosto não revelava emoções. A minha voz saiu abafada:

            “O que aconteceu minha senhora?”

            Ela sentou no meio fio da calçada da casa da esquina, como desabasse. E afundou a cabeça entre as mãos e disse desconsolada:

            “O Richard morreu, vizinho! Estou arrasada.”

         Aqui é necessário um esclarecimento. A maioria dos Curitibanos não sabe o nome de ninguém que não seja da família ou do ambiente de trabalho. Por isso chama todo mundo que não seja um total desconhecido de vizinho. Eu entendia que ela não soubesse o meu nome. Eu que sou uma pessoa civilizada e cheguei com mais de quarenta anos na capital tenho outros hábitos. Eu sabia o nome dela embora a chamasse apenas de senhora. Sabia que o nome dela era Valentina. E sabia o nome de seu marido. Senhor Arnoldo. E sabia que ele morreu de câncer há três anos e meio. Por que Armênia me contou. Entendia até o sofrimento dela se estender por tanto tempo. As pessoas em Curitiba por ficarem restritas ao ciclo familiar desenvolvem um apego muito grande por seus entes queridos e sofrem mais quando eles morrem. Até aí, tudo bem. Ainda mais a Senhora Valentina que nos anos recentes morava sozinha numa grande casa. Provavelmente deveria ver televisão o dia inteiro. E algumas horas da noite. Mas não entendia o motivo de ela errar o nome do marido. A explicação que encontrei naquele momento foi ele ter um segundo nome antes do nome de família.

            Eu observei polidamente:

            “A senhora se refere naturalmente ao seu marido, o Senhor Arnoldo. Eu não sabia que havia um Richard no nome dele.”

            Ela levantou a cabeça e me olhou com espanto. Ela limpou os olhos marejados com os punhos e disse;

        “Não, vizinho. O meu marido morreu há três anos e meio. Foi um grande companheiro. E depois que ele se foi eu me senti sozinha. Por isso passava o tempo vendo televisão ou na internet jogando paciência ou tentando encontrar parentes e amigos do tempo de faculdade no Facebook. Mas foi inútil, vizinho. As pessoas estavam cada uma levando as suas vidas e com pouco interesse na vida dos outros. Elas estão muito fúteis.”

            Eu comentei:

“Realmente. A internet por um lado nos aproximou e por outro nos distanciou. Não existem mais laços afetivos.”

Ela balançou a cabeça de forma afirmativa:

“Exatamente isto que eu quis dizer.”

        Eu não ia confessar. Mas eu também passava no computador horas antes e horas depois do almoço jogando paciência e no Facebook fazendo gracinhas que ninguém achava engraçadas. Por breves momentos eu julgava que estava fazendo papel de idiota. Depois achava que era melhor ser um idiota tranquilo do que ser um normal deprimido. Depressão era foda. Ela contou que acabou entrando num grupo da internet de antigos colegas do Centro Cultural Brasil-Estados Unidos preocupados em aprimorar o inglês e que reunia pessoas do Canadá, Nova Zelândia, Austrália, Inglaterra e Estados Unidos. Era um grupo heterogêneo com brasileiros que moravam fora do país e amigos que fizeram nestas cidades que tinham interesse em conhecer pessoas de outros lugares do mundo. Era um ambiente descontraído que permitia a pratica do idioma e de suas entonações regionais, além de troca de experiências, inclusive culinárias.

            A Senhora Valentina  se justificou:

            “O meu inglês estava desaparecendo. Eu era tão fluente! E aqui no Brasil não temos a necessidade de falar inglês. Mas sem prática a gente perde tudo. Vocabulário, gramática, expressões, tudo. E foi assim que o Richard me conheceu no grupo e me adicionou no Facebook. Ficamos amigos.”

            “Quando foi isso?”

“Faz um ano e meio exatamente.”

“Richard era professor de inglês?”

“Não. Artista plástico. Ele morava em Nova York.”

“Quantos anos tinha?”

“Sessenta e quatro.”

“Nova York?”

“Ele mora em Nova York.”

“Morava.”

“Sim. Morava.”

            Pensei em Nova York com ligeiro tremor. A pandemia atacou a cidade sem piedade. Milhares de mortos. Corpos abandonados em decomposição em caminhões abandonados. Velhos mortos aos montes em asilos ou pensões. Enterros coletivos em valas comum em Hart Island, no Bronx. Repentinamente entendia tudo.

             A senhora Valentina voltou a chorar.

“Quando ele morreu?”

“Ontem à tarde. Ele pediu para a irmã dele, Rosalyn, me avisar. O Brian também me ligou.”

“Brian?”

            “Melhor amigo dele. Brian me disse que eu fui a pessoa mais importante na vida dele nos últimos anos. Richard estava feliz e fazia planos para viver comigo em sua fazenda. Foi horrível ouvir aquilo porque era como receber a notícia de que um sonho foi desfeito repentinamente. O dele. E o meu. Brian disse que vai cuidar dos cachorros. Ele tinha dois cachorros. Sansão e Golias. Eram os melhores amigos dele, depois do Brian.”

            Ela chorou mais um pouco, balançou a cabeça e disse:

“Não dormi a noite toda. Estou chorando até agora. Não sei o que fazer da vida. E não tenho ninguém.”

         Como o número de mortos pelo vírus era grande naquele momento nos Estados Unidos, conclui que Richard morreu assassinado pelo vírus criminoso. Era o suspeito número um. Ainda mais morando em Nova York. Ainda mais que a Senhora Valentina se aproximou pronunciado a denunciadora frase:

            “Maldito vírus!”

Ela ficou em silêncio e eu murmurei assustado:

“Então o Richard foi mais uma vítima deste maldito vírus!”

Ela ergueu a cabeça desorientada e indagou:

“Que vírus?”

“O maldito vírus.”

“Maldito vírus?”

         “O Corona. Ele matou muita gente no oriente e agora está matando na Europa e na América. Nestes dias, principalmente em Nova York.”

            Ela de repente pareceu compreender tudo e disse desanimada:

“Não foi o vírus.”

Fiquei confuso. Eu indaguei:

“Mas se não foi ele, o que ele tem a ver com esta história?”

“Esta história. A minha história. A nossa história.”

          Começou como uma inocente amizade. Que fortaleceu a cada dia, com comentários sobre coisas triviais. Em pouco tempo ela sabia dele mais que os melhores e não escondeu segredos. Era apenas uma amizade. Talvez, mais que isso, embora no começo não soubessem.

            Ela respirou fundo e disse:

“Eu estava me sentindo muito sozinha e Richard preencheu o vazio que havia em meu espírito. Não que ele fosse tão especial. Mas não havia mais ninguém. E ele se tornou especial.”

Eu disse:

“Eu entendi.”

Ela me olhou e como tentasse traduzir suas emoções cantarolou com uma voz rouca:

“I found my April dream. In Portugal with you! When we discovered romance, like I never knew.”

            E não prosseguiu com a triste cantoria porque o corpo principiou a estremecer num choro convulso. Esperei aquilo terminar preocupado com a cachorra e também com o fato de estar demorando fora do apartamento quando deveria estar confinado para a minha proteção. Ela contou que há um ano encontrou Richard em Portugal. Ele queria conhecer o país e não queria ir sozinho. Pagou as passagens e se reuniram na Europa. E descobriram que eram especiais um para o outro e fizeram planos. Ele ia se aposentar em setembro. E, depois, pretendia conhecer o Brasil, dar uma volta ao mundo num cruzeiro e finalmente iriam morar na fazenda que ele tinha no Arizona. Valentina achou que uma nova primavera descortinava em sua vida. Aquilo era absolutamente fascinante e inesperado. Todos os detalhes do plano feito por Richard eram anunciados a ela. No dia em que tirou o passaporte, comprou as passagens. Eles conversavam todos os dias pela web cam. Depois do inverno, ele viria ao Brasil. Seria em abril. No entanto, estranhamente, depois de queixar de dores no estomago, em março ele parou de dar notícias. Ela ficou apreensiva. No começõ de abril, quando deveria vir ao Brasil, ele mandou uma mensagem.

            “Por causa do vírus, nossos planos terão de ser adiados.”

Na segunda semana de maio, entrou em  contato. Estava numa cama de hospital. A voz fraca. Ele disse:

            “Perdão, baby, por não ter entrado em contato. Mas fiquei muito doente. E fui internado. Pensei muito em você estes dias. Mas aqui não posso usar o celular.”

            Valentina estremeceu:

“O que você tem, Richard?”

“Câncer no fígado. O médico disse que vai operar. E quer posso ficar bom.”

            Aquele golpe foi mais forte do que se tivesse dito a ela que tudo terminara. Ela poderia resmungar que os homens eram assim mesmo. Daquele jeito não. Ele ainda gostava dela. Ele não veio ao Brasil por causa do maldito vírus. E, depois, adoeceu.

           Ele disse:

“O médico falou que eu posso voltar para casa, baby. Eu vou sarar e nossos planos serão realizados.”

Foram as últimas palavras que ouviu dele. Ele foi para casa. E no último domingo, Rosalyn ligou e disse:

“Valentina, tenho uma triste notícia. O nosso Richard morreu!”

Ela olhou para mim e disse:

“Sabe, foi terrível. Eu não tinha com quem dividir a minha dor. Chorei sozinha a noite inteira.”

           Depois de contar isso, ela se levantou e afastou oscilante com os olhos marejados na direção da ciclovia e do rio Belém, embora parecesse não ter rumo nem noção do perigo. Por falta do que dizer eu perguntei:

            “Onde a senhora vai?”

Ela se voltou e me olhou como não entendesse a pergunta. Por fim agitou a cabeça e disse apenas:

“Não sei.”

            A cachorra se contorceu e finalmente defecou na grama da calçada da casa da esquina. Com exceção da Senhora Valentina que descia para o rio Belém e de mim com a cachorra as ruas estavam desertas. Peguei no bolso do casaco um saco de plástico de supermercado e recolhi as fezes do animal e joguei no lixo. E depois voltei para o apartamento

25 de May de 2020by edilsonpereira
Crônicas

A garota do mercado

z

A última vez que a vi foi antes do primeiro caso confirmado em São Paulo numa quarta feira, dia vinte e seis de fevereiro. Um homem de sessenta e um anos que retornou de viagem para a Lombardia na Itália deu entrada no Hospital Israelita Albert Einstein com síntomas de quem foi infectado. Estava. No começo embora as fotos de caixões enfileirados na Itália publicadas na internet assustassem as pessoas, elas não achavam que o mesmo aconteceria aqui. Mas, por precaução, a gerência do mercado afastou pessoas consideradas do grupo de risco. O segurança velho e a senhora das flores que era diabética foram dois deles. Marcela, a garota do setor de vinhos, também. Ela tinha bronquite crônica. Na incerteza, foi para a quarentena. Quem me informava tudo era Claudia. Mas qualquer garota ou rapaz indagado támbém informaria. Não era segredo de estado.

Uma manhã, quando ainda não usava máscara, mas tomava os cuidados de não pegar na mão de ninguém e não dar abraços em conhecidos, eu passei com as compras pelo caixa de Claudia e observei:

“Estranho!”

“O que o senhor achou estranho?”

“Não vejo Serena no caixa há dois dias.”

“Ela está de quarentena.”

“Ela tem diabetes?”

“Não. Está grávida. A direção achou melhor deixar ela de quarentena.”

“Não sabia que ela estava grávida.”

“Ela também não.”

“Ela estava grávida e não sabia?”

Claudia morava na mesma cidade de Serena. Itaperuçu. Ficaram amigas porque vinham no mesmo ônibus para trabalhar na mesma empresa. Cinquenta e cinco minutos pela rodovia dos Minérios. Ela fez expressão marota e achei que estava perguntando demais.

Ela indagou:

“O senhor não sabia?”

“Sabia o quê?”

“O marido dela morreu.”

Achei aquilo confuso. O marido morreu e a garota engravidou. De quem? Não tive coragem de perguntar.

Disse apenas:

“Não sabia.”

Claudia leu no meu rosto que não estava entendendo nada. Ela olhou para os lados. Não tinha filas, nem clientes esperando. Além disso tinha outras duas caixas sem fazer nada. Então disse:

“O marido dela morreu atropelado.”

“Caralho!”

O caralho saiu sem querer. Levei um susto. Mas o caralho não impressinou Claudia. Ela sorriu um riso compreensivo e disse:

“Ele estava de moto. Uma camionete foi ultrapassar um caminhão e acertou ele em cheio. Morreu na rodovia mesmo.”

Aquilo era foda. Murmurei:

“Caralho!”

O segundo caralho incomodou Claudia. Um caralho ela suportava. Mas dois já era abusar da tolerância. Ela olhou para os lados. As outras caixas não ouviram o meu segundo caralho. Ainda bem. Ela continuou.

“Ela estava aqui. No mesmo caixa em que estou agora. A mãe dela apareceu. E disse para a supervisora que tinha uma notícia importante e precisava falar com a Serena. Contou o que era. A supervisora levou a mãe da Serena ali naquela sala de vidro da gerência e depois chamou a Serena. Ela saiu arrasada de lá. E voltou com a mãe para Itaperussu.”

“Pobre garota!”

Eu gostava de Serena porque como Claudia era atenciosa, meiga, não era fria, protocolar ou mesmo grossa como muitas outras funcionárias dos caixas. Sempre atendia com um sorriso natural, voz doce e olhar de quem via o mundo com simplicidade, sem maldade e sem grande ambição além de ter uma família e cuidar do marido e dos filhos. Parecia uma adolescente de dezoito anos. Perguntei um dia se ia fazer universidade e ela respondeu que era casada. Entendi. Era quase impossível ser casada, trabalhar e ainda por cima cursar uma faculdade. Ainda mais trabalhando em mercado de outra cidade com plantões e fazendo todos os dias uma viagem trinta quilômetros para ir e outra da mesma distância para voltar do trabalho. Chegava por volta de vinte e três horas em casa. O marido trabalhava na cidade em que morava mas quase sempre ia a Rio Branco e Tamandaré. Numa destas viagens foi atropelado. Eu estava sabendo agora.

Arrisquei uma pergunta:

“Ela conheceu outra pessoa?”

“Por que o senhor pergunta?”

“Como ela ficou grávida?”

“Ela ficou abalada com a morte do marido mas acabou superando porque descobriu que estava grávida dele. Pode uma coisa desta? Na última noite em que dormiram juntos ela engravidou dele.”

“Que coisa!”

“Acho que este nenê vai dar um sentido bom na vida dela. A mãe dela está feliz e disse que as coisas vão melhorar.”

“É o que eu desejo para ela.”

Umas três semanas depois daquele dia encontrei Claudia novamente. Ela não estava no caixa. Estava em treinamento para ser supervisora em outra loja da rede de mercados. Estava contente e quando passou por mim ela disse:

“Serena vai voltar na semana que vem.”

Achei estranho:

“Mas ela não está grávida?”

“Estava. Perdeu a criança. Está abalada. Esperando se recuperar para voltar.”

“Pobre garota.”

Ela moveu os ombros num gesto de resignação e disse:

“A vida prega algumas surpresas estranhas. Coitada da Serena. Dois golpes em sequência. Mas acho que isso é sinal de que alguma coisa boa a espera lá na frente.”

Era uma teoria sem base sólida. Talvez fosse uma espécie de mantra para a pessoa seguir em frente. Uma frase filha da velha frase:

“A esperança é a última que morre.”

Eu disse:

“Espero. Estas pancadas machucam muito.”

Claudia estava ficando importante e conversando menos. Eu fui embora. A partir da primeira semana de abril passei a ir ao mercado uma vez a cada três dias, para evitar aglomeração. E em horários de menor movimento. Fiquei um bom tempo sem ver a Claudia. E muito menos Serena. No começo de maio, quando encontrei Claudia novamente, estava na supervisão. Eu passei perto e perguntei:

“Vai ficar na supervisão agora?”

“Não. Meu treinamento terminou. Estou apenas esperando a transferência para outra loja. Deve sair ainda esta semana.”

“Parabéns!”

Ela deu um enorme sorriso por trás da máscara branca. Uma pena não ver aquele sorriso, mas era possível percebê-lo olhando em seus olhos que ficaram miúdos, quase fechados. Afinal, não era apenas a promoção. Era um salário maior. Ainda mais numa crise econômica sem precedentes que se anunciava ainda mais grave por conta do vírus que em São Paulo já levava centenas de pessoas para o cemitério, em Pernambuco virou caos e em Manaus se transformou em ópera macabra. Os trabalhadores não sabiam se ficavam em casa ou se iam trabalhar. Os empresários queriam gente comprando em suas lojas e alardeavam que as pessoas tinham que sair de casa. Uma balburdia. As ruas ainda estavam cheias e junto com as pessoas o vírus circulava infectando muitos e matando outros. Uma promoção em época de desemprego e crise era para comemorar.

Ela disse:

“Obrigada!”

Eu olhei para os caixas e perguntei:

“Eu não vi mais a Serena.”

“O senhor não sabia?”

“Não sabia o quê? Ela engravidou de novo?”

“Não. Ela morreu.”

Aquilo foi um choque.

“Como, morreu?”

Claudia ficou séria. Ela disse e os olhos miúdos ficaram marejados.

“Coitada da Serena. Não teve sorte.”

A observação fazia sentido naqueles dias. Para continuar vivo era preciso tomar muitos cuidados, ficar em casa, e ter sorte. Mesmo tomando cuidados pessoas eram infectadas. Eu, por exemplo, só saia de casa para ir ao mercado. Tirava a roupa com a qual fui ao mercado, deixava os sapatos fora de casa e lavava as mãos com sabão e higienizava as compras com alcool gel. Como ficava sozinho o dia inteiro dentro de casa, quando chegava ao mercado estava ansioso para conversar com alguém. Este alguém quase sempre era Claudia. E nos próximos dias nem ela teria para conversar porque seria transferida para outra loja.

“O que aconteceu com ela, Claudia?”

“Quando perdeu a criança teve de ir ao hospital. Sabe como é! Limpeza de utero. Estas coisas.”

Eu fiquei quieto. Achei melhor não fazer perguntas sobre assunto que pouco ou quase nada conhecia.

Claudia disse:

“Ela voltou para casa e descobriu que foi infectada.”

Eu arregalei os olhos e abri a boca por trás da máscara branca, uma máscara de cirurgia que me disseram ser mais eficiente. Mas ela ouviu o que eu disse:

“Caralho!”

Claudia disse:

“Caralho, mesmo! Ela passou mal. Foi internada. E aconteceu.”

“Aconteceu?”

Claudia me olhou. Serena, a doce garota do mercado, simplesmente deixou de existir. O mais estranho que a última vez que a vi foi antes do primeiro caso. Agora ela era mais uma das milhares de pessoas levadas por ele. Pelo vírus.

Claudia disse:

“Sim. Aconteceu.”

Eu fui embora para casa pensando que não era só velhos e doentes que ele levava. Ele levava quem encontrava pela frente, embora muitos conseguissem escapar, mesmo infectados.

 

19 de May de 2020by edilsonpereira
Crônicas

Ninguém dançava com o coronel

bordel

Estou isolado neste apartamento há setenta dias enquanto um vírus letal lá fora ameaça todo mundo, principalmente os velhos e doentes. Não estou doente embora com dores lombares e artroses. É o preço de chegar aos setenta. Só saio de casa para ir ao mercado uma vez por semana. O mercado fica a cem metros. E ainda assim sou o primeiro. O mercado abre das sete às oito da manhã para os velhos e fodidos do grupo de risco. Pego uma rua secundária por onde não passa ninguém. Vou de máscara e luvas. Sozinho no mercado não sou vítima fácil do vírus. Mesmo assim toco nos produtos com sentimento misto de repulsa e temor. Lavo tudo quando chego em casa. A vida não está fácil. E podia ser pior. Podia não ver o sol nascer de novo. Estou vendo. Mas tudo está tão triste que às vezes lamento chegar aos setenta. Para passar as horas, vejo filmes, leio livros, ouço música e bebo vinho. Uma garrafa de argentino ou chileno a cada quatro dias. O corpo não absorve mais com vigor álcool, socos e vírus. Todo cuidado é pouco.

“Tio, não reclame. Você está muito bem. Não tem crianças para reclamar o dia todo!”

Hoje é domingo. Minha sobrinha Zenaide ligou de manhã. Ela não aguenta mais os filhos em casa. Assim como está em pânico por não saber se vai continuar no emprego. Está tudo incerto, impreciso e inseguro. Não é a pessoa mais indicada para eu me queixar. Ela sempre tem um problema maior que o meu. Perdi o hábito de reclamar com ela qualquer coisa que tenho. Milton, o marido, comprou um passarinho. Um periquito amarelo que come as orquídeas dela. Em vez de se revoltar com o marido, acha aquilo engraçado. Porque gosta dele. Mulher quando gosta do sujeito não vê defeito, mas quando não gosta não vê qualidade. Eu desligo o telefone fixo e me pergunto porque ainda o tenho se o celular toca a todo instante com mensagens do Watts App. Noventa por cento porcarias. Volto para o quarto do computador onde estão os livros e a televisão, além, claro, do computador. Antes achava que perdia tempo no Facebook. Hoje acho que até aqui me ajudou a suportar a quarentena. Tenho uma amiga em Londrina que tem bom senso de humor. Gente humorada quando morresse deveria ir para o céu sem entrevistas preliminares com São Pedro. Elas fazem as pessoas felizes. Ainda bem. Uma amiga na Alemanha me disse que a tendência entre as mulheres alemãs é achar os homens coreanos bonitos. Achei absurdo.

Mas ela reafirmou com autoridade:

“Os homens europeus não estão mais com nada!”

Fiquei pensando em Alain Delon, Terence Stamp, Marcelo Mastroiani, Jean Sorel e David Hemmings.

“David Hemmings é bonito?”

Perguntei para Veridiana na frente do Cine Plaza em 1970. Ela tinha assistido ao filme “Blow Up” de Micheangelo Antonioni baseado no conto “As babas do diabo”, de Julio Cortazar. Eu gostava muito desta garota. Eu me apaixonava fácil na adolescência. Às vezes duas vezes pela mesma garota, como Leonora. Veridiana estudava o Clássico no Colégio Gastão Vidigal. Eu estudava o Científico. Ela gostava de sujeitos barbudos e com cara de intelectual. Eu não tinha barba e não era intelectual. Não me deu nada além de um sorriso gentil. Depois me apaixonei por Leonora pela segunda vez. Ela estudava no primeiro ano do Clássico. Também não me dei bem. As garotas e os poucos rapazes que estudavam no Clássico eram intelectuais. Aprendiam latim, grego, francês, inglês e espanhol. Sem contar filosofia e sociologia. Sabiam discorrer sobre o último filme de Hitchcock mesmo sem ter assistido, assim como eu tinha facilidade em citar a escalação do Palmeiras, Botafogo e Santos sem pestanejar. Por isso eu não tinha elementos para palpitar se David Hemmings era bonito ou feio. Sem contar que ela era mulher e naquele tempo homem não achava homem bonito. Pelos menos os caras que estudavam o Científico. Mas tinha um pequeno problema contra a minha teoria. Hemmings se parecia com Paul McCartney. E todas as garotas diziam que ele era o mais bonito dos Beatles. Então aceitei. David Hemmings era bonito. Não ia brigar com Veridiana e com nenhuma garota por uma bobagem desta. Não fazia sentido. Agora aceitar que coreano é bonito passou dos limites. Mas também não vou brigar. Eles parecem todos iguais e não entendo uma palavra do que dizem. Mas esta amiga não conhece a música “Broto legal” da Celly Campello. Como posso discutir com alguém que acha coreano bonito e não conhece “Broto legal”? Há um abismo etário entre nós. E isto afeta as percepções. A quarentena deixa as pessoas muito sensíveis.

O meu amigo Ganchão por exemplo:

“O que mais sinto é a falta de botecos!”

Fico imaginando ele na pequena Cambé neste isolamento social trovejando como um leão enjaulado e furioso contra a insanidade que tomou conta do país. Sempre o achei a nossa versão de Woody Guthrie, que escreveu na guitarra “this machine kills fascists”. Gancho não chega a matar ninguém, assim como Guthrie, mas nunca deixou de aplicar cacetadas nos insanos com as armas que Deus lhe deu. Agora ele, inquieto que é, está saudoso de entrar num boteco pé sujo, encostar no balcão e ouvir a filosofia popular dos humilhados e ofendidos.

E hoje é domingo:

“Domingo era dia de ouvir Chicão da Zélia no antigo Bar do João da Véia!”

Bem, é hora de deixar o Facebook e tentar terminar de ver o filme “Frida”. Que parei duas vezes. E não passei da meia hora. As notícias de mortes do vírus causam angustia suficiente. E a vida da pintora mexicana foi um inferno.

Claro que eu pensei:

“A vida de Frida foi muito sofrida!”

Decidi ver outro filme. A escolha recaiu pela centésima vez em “Os brutos também amam”. Mais romântico. Não me canso de rever alguns filmes. Além deste, “Casablanca”, “O Falcão Maltês”, “Blade Runner”, “Os Imperdoáveis” e outros. Também releio muito. Depois do filme, almocei e fui para a cama reler um livro. Terminar a segunda parte do romance “Colares de Xangô e Sapatos Bicolores” de William Kennedy. Adorei tanto a segunda parte do livro que me soou como um pequeno romance sobre a revolução cubana que agora estou na terceira leitura. Renata, a burguesa cubana que gosta de macumba e revolução e Ernest Hemingway enfiando a mão na cara de um patrício porque cantava mal são cenas que valem a releitura.

Algumas perguntas são deliciosas:

“Estou a caminho de me tornar seu terceiro amante?”

Estava nesta pergunta quando o celular tocou. Fiz sentado na cama com as costas apoiadas em dois travesseiros um movimento com os ombros para aliviar a tensão. Coloquei o livro ao lado da perna direita sobre a cama aberto na página em que estava lendo. Atendi ao celular. Era Leonora. Fiquei apreensivo. Há alguns anos encontrei Leonora no centro da cidade. Ela foi tão calorosa que me surpreendi. Ela me contou que o marido morreu e por isso vendeu o apartamento na capital e foi morar no litoral numa casa que tinham. Os filhos se casaram e estava sozinha. Não estava mal de vida porque ficou com a pensão do marido. Depois deste dia, vez e outra me ligava. Cada vez mais frequente. Com a quarentena as frequências aumentaram. A última foi há alguns dias. O cachorro dela morreu no dia primeiro de maio. Quer dizer, foi morto. O animal, um Lhasa Shitzu preto, começou a ter espasmos na noite anterior e estava com a língua de fora de tanto ter espasmos. Leonora chorou a madrugada inteira. E por volta das dez horas me ligou dizendo que não aguentava mais chorar. Queria saber o que deveria fazer. O cachorrinho chamado Bartolomeu de Gusmão mas que atendia pelo nome de Bartô também não aguentava mais ter espamos, mas não morria. Eu sugeri para ela ligar para um veterinário.

“Mas hoje é feriado do dia do trabalho!”

Eu sabia que era. Mas sugeri. Vai que encontrasse um plantão. Ela tentou e encontrou um veterinário de plantão que era o mesmo que cuidava de seus cinco cães. Quer dizer, quatro cadelas e um cachorro, o Bartô. Liguei meia hora depois para saber o que tinha acontecido e ela estava chorando copiosamente:

“O Bartô morreu neste instante. Nos meus braços! O que vou fazer de minha vida?”

Era um pequeno drama no meio de uma pandemia. Aquilo me tocou. Ela contou que o veterinário disse que Bartô estava com um tumor no cérebro e aquilo interferiu no sistema nervoso. Por isso os espasmos. Ele não ia parar de ter espamos até morrer. Bartolomeu estava com vinte anos. Mas não morria. O cachorro era a última ligação dela com o marido. Já que os filhos foram cuidar de suas vidas. Foi ele quem comprou para ela. O veterinário disse com todo cuidado que a solução mais caridosa era dar um sedativo e aplicar em seguida um troço para matar o cachorro sem ele sofrer. Uma eutanasia. Leonora concordou mas não ia deixar o bicho morrer sozinho. Ficou fazendo carinho no rosto dele enquanto ele ressonava cansado porque o sedativo interrompeu os espasmos. Depois da segunda injeção, o coração do bicho parou de bater. Neste instante ela atendeu minha ligação. Fiquei preocupado. Naquele dia liguei mais duas vezes para ver como ela estava. Resumindo, ela enterrou o cachorro no quintal de sua casa e ficou duas noites sem dormir. E no terceiro dia me contou algo surpreendente:

“Nem quando meu marido morreu eu chorei e sofri tanto. E nem senti a falta dele como estou sentindo a falta de meu cachorrinho. O querido da minha vida!”

Ela chorava e eu pensava que se ela chorou pelo cachorro mais do que chorou pelo marido, a minha cotação no universo emocional dela devia estar em baixa. Algo perto de zero. Estas coisas não fazem bem para o ego da gente. Mas continuei ouvindo porque sabia que ela precisava conversar com alguém e ela não estava querendo me ofender. Era mais uma sozinha em sua casa no meio da pandemia. E com medo de sair nas ruas. Por causa do vírus. Ela mora perto de Santa Catarina. As notícias chegam como tiros de metralhadora. Fazendo estragos. A nora da vizinha, que era enfermeira num hospital de Joinville, foi visitar a mãe do marido num final de semana e infectou a família toda. Foram os primeiros casos na cidade. Aquilo apavorou Leonora. A tragédia estava acontecendo na casa ao lado.

De repente ela me perguntou assustada:

“Você sabe se o vírus pula o muro?”

Eu não sabia explicar. Este vírus é novo e terrível e os cientistas estão descobrindo a cada dia uma nova habilidade dele. Ainda não chegaram na parte de pular o muro. Agora ela liga de novo. Claro que atendi tenso. Será que o vírus pulou o muro? Se pulou, Leonora está fodida. Está sozinha na cidade e eu não posso ajudá-la. É uma situação aterradora. Claro que a gente não deixa de pensar mesmo que de relance que depois que o marido morreu ela se lembrou que eu existia. Mas quando era jovem e linda e usava blusa branca e saia escocesa, eu não tive chance. Agora está velha e sozinha e sabe que eu também estou sozinho. Ela já sugeriu que podíamos corrigir um grande equívoco. E insinuou que morar perto do mar seria bom para mim. Agora não tenho mais interesse em corrigir nada. Só estou preocupado em não ser pego pelo vírus. Afinal, ele está pegando todo mundo. Principalmente os velhos. E coisa que me preocupa. Está matando escritores e nenhum general. Pode parecer absurdo, mas começo a achar que este vírus é fascista. Aldir Blanc, Sérgio Sant’Anna e Olga Savary foram levados. Por enquanto. E para entristecer mais ainda, Rubem Fonseca e Luiz Alfredo Garcia-Roza também foram embora nestes dias tristes. É muita gente boa indo embora. E a gente aqui tentando ficar. Estou assustado. Isto influencia nos reflexos. Eu estava silencioso. Não soube responder se o vírus pulava o muro. E agora ela liga de novo. Será que o vírus pulou o muro? Leonora fez pausa dramática no outro lado. Não estranhei. Ela fez curso superior de teatro há mais de vinte anos e conhecia os macetes da interpretação.

Por fim disse:

“Hortência me ligou!”

Hortência era a irmã mais velha de Leonora. Trabalhou no Banco do Brasil e fez teatro amador. Ela ainda mora em Maringá. Separou do marido. Mora sozinha num apartamento no quinto andar do edifício em que morava com o marido. Ele mora no apartamento do terceiro andar. Ele se aposentou. As duas filhas do casal moram na Europa. Uma na Itália e outra na Alemanha. A da Itália com um sujeito de cento e cinquenta quilos e a da Alemanha com uma dona chamada Gertrude Heine.

Eleonora disse:

“Gregório não quer sair da cama!”

Gregório era o marido de Hortência. Agora ex-marido. Ela teve câncer e superou. Ele teve infarto, tem diabetes, setenta anos. Está com tudo no grupo de risco. E além disso é hipocondríaco. Com o vírus entregou os pontos.

“Ele disse para Hortência que vai esperar a morte na cama!”

“Que loucura! Mas se ele ficar quietinho lá duvido que o vírus chegue até ele.”

“Ela vai lá todo o dia fazer sopa e levar na cama para ele. Ele está prostado. Por isso não sai do apartamento e não quer viver. Ela que paga os boletos dele. Acha que se o vírus encostar um dedinho nele está perdido.”

Eu pensei que o vírus tivesse coroas. Não dedinhos.

Claro que não comentei. Eu observei:

“Viver em quarentena é foda.”

Ela disse:

“Ele é depressivo e neurótico.”

“Qual é a diferença entre depressivo e neurótico?”

“Não sei. Mas ele é as duas coisas.”

“Ele precisa buscar forças para superar isto.”

“Como? Ele está perdendo forças! Perdeu trinta quilos. De onde vai tirar forças? Ficou louco?”

Ela estava certa. Mas o que eu ia dizer?

“Não está fácil.”

“Mas te liguei não foi por isso.”

“Tem mais?”

“Tem.”

Eu tremi. O que seria agora?

Ela disse:

“Sabe o meu pai?”

Quem não conhecia o pai de Leonora. E também pai de Hortência. Ele foi um dos responsáveis por a gente não namorar no final dos longíquos anos 60 quando eu ia para a frente da catedral de madeira nas manhãs de domingo para vê-la passar com a sua imaculada camisa branca e saia escocesa ao lado da mãe e do pai. Como sonhei com aquela menina sem a saia escocesa! Só Deus sabe. O coronel Gabriel Garcia Lopes era um homem austero, moralista, cristão, honesto, decente, admirado por todas as pessoas de bem da cidade e temido por todas as pessoas que não eram de bem. Ele ia à missa de farda e com medalhas no peito. Aquilo impressionava. O coronel tinha grande moral na cidade e até na capital. O próprio bispo Dom Jaime fazia questão de cumprimentá-lo, sem pedir para ele beijar o anel episcopal que oferecia para todos os outros beijar. Lembro-me até hoje do dia em que cheguei para o coronel e disse solene e respeitoso:

“Eu queria namorar a sua filha!”

Eu tinha dezessete anos e ela dezesseis. Ele respondeu como se eu fosse um inimigo argentino:

“Com esta cara de índio se não sair da minha frente vai namorar o meu chicote!”

Nem sabia que ele tinha chicote. Recado dado, recado entendido. Dois anos depois ele foi transferido para Cruzeiro do Oeste. E foi o responsável pela construção do quartel da Polícia Militar da cidade. Com dinheiro da comunidade. Sem um tostão do governo do Estado. Ganhou mais medalhas e no dia da inauguração ganhou uma espada de prata do governador. Na ausência dele, tentei namorar Leonora mais uma vez. Agora ela era aluna do Clássico. Amiga de Veridiana. Mas agora foi ela quem disse não. Ela sorriu e ficou com Maurílio que ia estudar engenharia. E com quem três anos depois se casou. Os dois se mudaram para a capital. Eu fiquei muitos anos sem vê-la até também me mudar para a capital. A vida nunca foi fácil para mim. Talvez por isso enfrento este vírus com altivez e galhardia, com um pouco de bravura e elegância, embora às vezes perca a estribeira no Facebook. Leonora me faz aquela pergunta. Como eu ia me esquecer do Coronel Gabriel Garcia Lopes?

“Não tenho boas recordações dele. Ele morreu de diabetes, não foi?”

“Foi. Hortência disse que há pouco mais de dez anos conversou com Adelaide Viana.”

“Nunca ouvi falar.”

“Era uma putona amiga de minha mãe. Meu pai odiava a Adelaide. E ainda mais a amizade dela com minha mãe.”

Eu nem sabia que a mãe de Leonora era amiga de putas.

Eu disse:

“Ele estava certo. Naquele tempo pegava mal mulher de família ser amiga de prostitutas.”

“Eu sei. Acontece que Adelaide soube que Hortência estava doente. Meu pai estava fora e ela apareceu em casa com remédio caseiro que curou a menina. Ela morava a cinquenta metros de nossa casa numa espécie de pensão onde levava os homens. Nessa época a gente morava perto do Osvaldo Cruz. Depois disso, quando tinha algum problema de saúde, a mãe pedia conselhos para Adelaide que era boa nisso e as duas ficaram amigas.”

“Por que ela não largou a putaria e botou consultório de benzedeira e curandeira? Ia ganhar mais dinheiro.”

“Adelaide gostava da gandaia. Teve três filhos e não criou nenhum. Entregou todos para a mãe dela criar.”

“Tudo bem. Mas não entendi porque você conta tudo isso.”

“Hortência me contou agora de manhã que Adelaide pediu para contar isso para as irmãs dez anos depois que ela morresse.”

“O que ela contou?”

“Que meu pai não gostava da amizade dela com a mãe porque tinha medo que minha mãe soubesse das patifarias que ele fazia na zona.”

“Teu pai ia na zona?”

“Não saia de lá.”

Aquilo era uma surpresa. Eu indaguei achando que não fosse óbvio:

“Ele gostava de putas?”

“Pois é. Isso que é mais estranho. Ele era moralista. Não gostava de deitar com as putas. Mas gostava de ir lá e ver o ambiente porque era alegre. Ele tomava cerveja. Se divertia. Ia com os amigos.”

“Não vejo nada de mal nisso.”

“Acontece que depois de ficar bêbado ele queria dançar com as putas.”

“Acho normal. Bêbado faz coisas excêntricas e inesperadas.”

“Mas como ele não dormia com nenhuma, elas também não aceitavam dançar com ele depois que ele estava bêbado.”

“Acho que estavam certas. Mas se fosse eu no lugar delas eu dançava. Tomar dinheiro de bêbado é mais fácil e não teria que trepar com ele.”

“Esta é uma opinião sua. Não era a opinião delas.”

“Perfeitamente.”

“Como nenhuma delas dançava com ele, ele tirava a roupa, ficava pelado e dançava sozinho em cima das mesas.”

“O coronel?”

“Sim. Meu pai.”

“Caralho! Eu nunca ia imaginar uma coisa desta.”

“Nem eu. E tem mais.”

“Tem mais?”

“Sim. Ele dançava com uma rosa na bunda.”

“Uma rosa na bunda?”

“Sim. Na bunda. Não era enfiada no ânus. Era uma rosa vermelha, com o talo preso entre as duas bandas da bunda e a flor no alto, bem no começo do rego. Ele requebrava o traseiro enquanto todo mundo se esborrachava de rir. Tinha gente que rolava no chão.”

Naturalmente fiquei perplexo e sem saber o que dizer. Não consegui imaginar o coronel tirando cerimonioso o quepe, as medalhas, a farda e ficando pelado com a expressão austera com que me encarou e dançando sobre as mesas de um bordel como uma odalisca com uma rosa vermelha na bunda. Eu não conseguiria imaginar uma cena desta nem nos meus piores pesadelos. Nem nos meus mais rancorosos desejos de vingança.

Respirei fundo e perguntei meio desconfiado:

“E onde ele arrumava a rosa vermelha?”

“Não sei. Vai ver que levava para dar para alguma puta que achasse bonita.”

Estava atônito. Sinceramente me deu vontade de sair fora do apartamento para respirar um ar fresco. Pela janela, embora fosse mês de maio friorento, estava sol bonito. Eu precisava respirar. Mas me lembrei do vírus. Era melhor não vacilar. Se fosse de máscara não ia respirar direito a atmosfera ligeiramente cálida e de um colorido quase sedutor.

Eu perguntei:

“Leonora, por que você me conta tudo isso?”

“Foi a única pessoa que me lembrei para contar. Não queria ficar com esta história só para mim. Além disso, você gosta de escrever e não está fazendo nada. Pode passar algumas horas escrevendo isto. Ajuda a preencher as horas e os dias.”

“Entendi.”

“Lembrei também que a gente deixou de fazer tantas coisas porque meu pai era um sujeito austero. A gente o respeitava muito. Nunca íamos imaginar que ele fazia uma coisa desta.”

Eu disse:

“Entendi.”

Mas a verdade era que eu não entendia nada. Estava ainda meio perplexo. Claro que eu jamais iria esquecer uma das coisas que o coronel não deixou Leonora fazer. Namorar comigo quando eu era o único cara próximo a ela. Tinha se mudado de perto do Osvaldo Cruz e morava na época na Cerro Azul. Ela usava camisa branca e saia escocesa para ir à missa das nove. Como sonhei com ela sem aquela saia escocesa. Ele não deixou porque eu tinha cara de índio. Depois Leonora foi para o Clássico. E aí ficou intelectual. Ficou exigente. O resto vocês sabem. Mas tudo isso ficou no passado. E esta história serve agora apenas para preencher de melancolia estes dias vazios que estou passando dentro deste apartamento.

 

18 de May de 2020by edilsonpereira
Crônicas

A longa noite do vento quente

01

Meus autores preferidos de romances policiais são Dashiel Hammet, Raymond Chandler, Lawrence Block, James M. Cain e David Goodis. Os dois últimos abordam misérias existenciais humanas (Cain) e sociais (Goodis). Os três primeiros são estilistas, cada qual a seu modo. Chandler odiava Cain. “O que quer que ele toque cheira a bode. Ele representa tudo que detesto num escritor. Gente assim constitui o verdadeiro rebotalho da literatura, não porque escreva sobre coisas imorais, mas porque o faz de uma maneira imoral”, dizia Chandler. Bateu pesado.

Por aí se percebe que embora os caras sejam bons não queria dizer que se entendiam. Mas escrevo sobre o subgênero hard boiled. Os cinco acima pertencem a ele. O hard boiled se desenvolveu no final dos anos 20 e começo dos anos 30 nos Estados Unidos durante a lei seca quando o sistema legal ficou tão corrupto quanto os bandidos. O hard boiled apresenta componentes obscenos, violência extrema, assassinatos e contextos eróticos que quase sempre levam ao sexo explícito. Os protagonistas quase sempre trabalham como detetives e são os heróis da história. Ou melhor, anti-heróis.

Este subgenero dividiu a literatura policial em duas. Antes e depois. O escritor argentino Jorge Luís Borges chamava a primeira de psicológica e a outra de naturalista. E ambas ganharam lugar de destaque em princípio apenas nas estantes de livros policiais. Depois na grande literatura. Em artigo célebre, Raymond Chandler disse que tudo aconteceu aos trancos e barrancos. “A pulp fiction jamais sonhou com a posteridade e quase tudo já deve ter adquirido uma coloração amarelada. E é de fato necessário uma mente bem aberta para enxergar além das capas desnecessariamente espalhafatosas, dos títulos de mau gosto e dos anúncios pouco aceitáveis, para reconhecer a força autêntica desse tipo de história”, disse ele.

Mas o que atraía o leitor nestas histórias, Chandler? “Possivelmente o cheiro do medo é que fazia com que essas histórias proliferasem. Suas personagens viviam num mundo que desandava, num mundo em que, muito antes da bomba atômica, a civilização já criara as engrenagens para a sua própria destruição”, acrescenta. É sobre esta sociedade que ele e outros autores da hard boiled escrevia. E não sobre salões com mordomos assassinos. O fato é que os dois subgeneros robusteceram a literatura policial. Conta-se em bilhões o número de livros vendidos no mundo. Se incluir os pocket books, estes bilhões aumentam mais ainda.

O curioso é que por décadas o romance policial não foi considerado gênero sério. Era entretenimento. Estava na estante da subliteratura e não por falta de leitores. Grandes escritores eram fanáticos por ele e Hollywood não o dispensou de olho gordo na multidão de leitores. No começo, tanto nos livros quanto nas telas, as histórias eram relegadas a mansões soturnas com mordonos estranhos e cadáveres misteriosos. Um detetive astuto usando métodos dedutivos tentava encontrar e encontrava o responsável pelo cadáver. Depois vieram os detetives americanos que não primavam pela elegância e tampouco pela sutileza e bons modos.

Mas vamos ao início desta história e como ela se desdobrou. É dado de barato que o romance policial como gênero literário nasceu em abril de 1841 com a publicação do conto “Os assassinatos da Rua Morgue”, de Edgar Allan Poe, na Graham’s Magazine, da Filadélfia. O conto trata de dois crimes brutais na Rua Morgue em Paris. Os casos parecem sem solução até o detetive C. Auguste Dupin entrar na parada e usando a inteligência como arma desvendar o misterio. Poe ainda escreveu mais duas histórias nos anos seguintes. “O Mistério de Mary Roget” em 1842 e “A Carta Roubada”, em 1844. Estas três histórias lhe rendaram o título de fundador do romance policial.

Poe e Dupin são precursores do romance policial psicológico em contraposição ao hard boiled dos anos 20 e 30 nos Estados Unidos que Borges chamou de naturalista. O romance psicólogico ganhou destaque com a criação de Sherlock Holmes pelo médico e escritor Sir Arthur Conan Doyle. Holmes, investigador londrino do final do século 19 e começo do século 20, apareceu pela primeira vez em 1887 na revista Beeton’s Christmas Annual com “Um estudo em vermelho”. Até 1927 habitou as páginas de quatro romances e 56 contos.

Ele usava o método de Dupin, a lógica dedutiva. É até compreensível que Holmes não fosse um grosso detetive como os americanos do hard boiled. Com exceção de uma, todas as histórias de Holmes ocorrem nas eras vitoriana e eduardiana, entre os anos 1880 e 1914. As histórias na maioria eram publicadas em jornais e revistas como folhetins e depois de comprovado o sucesso em livros. A grande ironia do romance psicológico também chamado de inglês por seus mordomos é que ele foi fundado por um norte-americano: Alan Poe.

O enredo clássico da escola psicológica era formado por um crime com vários suspeitos, seja roubo, assassinato ou sequestro. A identidade do culpado só era revelada nas últimas páginas. Por isso que esta escola foi também chamada de “Who Done It?”. Ou “quem fez isso?” Aliás, “Quem Foi?” era nome de uma revista de histórias policiais em quadrinhos publicada nos anos 50 e 60 no Brasil pela Ebal, com histórias como “A vingança é sempre inútil” e detetives improváveis como Marilyn Holmes, loira sensual como Marilyn Monroe e astuta como Sherlock Holmes. Criação brasileira.

Além de Conan Doyle a escola psicológica foi representada por uma das maiores autoras de romances policiais, a inglesa Agatha Christie, também chamada de “A Rainha do Crime”, criadora dos detetives Hercule Poirot, Miss Marple, Tommy e Tuppence Beresford e Mr. Quin. Agatha publicou mais de oitenta livros, alguns com pseudônomo de Mary Wetsmacott. Ela merece parágrafo à parte nesta história porque é a mais bem sucedida romancista da literatura popular em todo mundo.

Agatha Christie foi traduzida para mais de 100 idiomas e vendeu ao longo dos séculos 20 e 21 a espantosa soma de 4 bilhões de exemplares. Estes números a deixam atrás apenas de William Shakespeare e da Bíblia. O que também prova a força da literatura policial. Claro que além de Holmes e Christie existem outros autores de qualidade no romance policial psicológico. Estes números e nomes dariam para encerrar a história do romance policial não fosse a aparição do romance policial naturalista.

No romance naturalista os detetives não são dotados de inteligência quase superior, conhecimentos cientificos acima da média e outros recursos. Alguns são bem toscos intelectualmente. Mas em compensação os personagens são humanizados, os detetives bebem, se envolvem em romances e sexo com outras personagens sejam boas ou más. E é comum ocorrer neste subgênero tramas paralelas que se sobrepõem umas às outras. Mas como foi que ele surgiu?

Não se pode escrever sobre o hard-boiled sem mencionar a revista Black Mask. Foi em torno dela que surgiu, floresceu e deu origem a outras dezenas de revistas que recrutavam ávidas histórias de autores, muitos dos quais, como Dashiel Hammet, vieram a se tornar celebrados. Hollywood percebeu o sucesso das revistas pulp fiction (ficção de poupa, por usar papel jornal que era barato) vendidas a 20 cents e levou muitos autores como roteiristas para os estúdios da costa oeste, além, claro, de filmar histórias publicadas.

A Black Mask surgiu de maneira insólita. O jornalista Henry Louis Mencken e George Jean Nathan estavam desde 1917 no vermelho com a The Smart Set, fundada sete anos antes. A revista editada em Nova York era a coqueluche da Era do Jazz nos Estados Unidos. Só gente de primeira escrevia para ela. Jack London, Ambrose Bierce, D. H. Lawrence, Joseph Conrad, William Butler Yeats, Eugene O’Neill, Aldous Huxley e até James Joyce. Edmund Wilson era crítico. Era lida com avidez por Theodore Dreiser, Ezra Pound, Sinclair Lewis, F. Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway. Só nesta lista tem quatro Prêmios Nobel. Mas a grana não entrava. Mencken e Nathan para levantar dinheiro tiveram a ideia de publicar uma revista popular com papel barato destinada a trabalhadores e leitores sem preocupações intelectuais.

A revista iria publicar exclusivamente ficção policial, de mistério e detetive, histórias de amor e ocultismo. Tudo o que o povão gostava e ainda gosta. O primeiro número saiu em abril de 1920. O primeiro editor da revista foi Florence Osborne. Que por precaução, abreviou o nome para FM Osborne. Revista popular ia pegar mal. Depois de oito edições, Mencken e Nathan concluíram que o investimento inicial na Black Mask de 600 dólares foi muito lucrativo e resolveram vendê-la para os então editores, Eltinge Warner e Eugene Crow, pela importância de 12 mil dólares. Para eles foi um bom negócio.

A direção da revista passou então para George W. Sutton em 1922 e dois anos mais tarde para Philip C. Cody. Com este último, Black Mask se tornou mais sensacionalista. As histórias escolhidas para publicação eram maiores e complexas, com mais tiros, tripas, sangue e sexo. Estava consolidado o novo jeito de escrever histórias policiais. Do qual Hollywood se aproveitou e ajudou a projetar com os filmes B nos anos 40 e 50, dirigidos em grande parte por diretores que fugiam do nazismo e traziam na bagagem a experiência expressionista.

A revista projetou Dashiel Hammet como principal nome deste novo jeito de escrever. O seu livro, “O falcão maltês”, foi publicado em partes na Black Mask a partir de setembro de 1929 colocando em evidência o detetive Sam Spade. Raymond Chandler começou a escrever histórias policiais porque encontrava-se em dificuldades financeiras. Foi outro que se consagrou nas páginas das revistas populares. Chandler criou um dos maiores detetives dos romances policiais, Philip Marlowe. E além deles, muitos outros como James M. Cain. Depois da Black Mask, surgiram dezenas de outras revistas na mesma linha como Special Detective, True Crimes, Crime Cases, Crime, Women in Crime, True Detective, Popular Detective, New Detective, Crime does not pay, esta em quadrinhos, e muitas outras.

No meio de tudo isto tinha muitas histórias ruins. Mas também muitas histórias boas. E elas em grande sobreviveram. Era a Lei Seca. Os gangsteres estavam em evidência e dominavam amplos setores da vida americana, inclusive em Hollywood. Tudo conspirava para os temas tratados por estas revistas serem populares. Algumas décadas depois o romance policial ganhou novos nichos como thrillers jurídicos, subproduto do subgênero naturalista protagonizados por advogados, promotores, policiais entre outros envolvidos não só em investigar, como também em provar a inocência ou culpa de um personagem que contrata seus serviços.

O escritor Erle Stanley Gardner ganhou fama com este estilo jurídico ao criar o advogado Perry Mason. Os thrillers médicos são a mesma coisa. Os médicos usam seus conhecimentos para combater doenças e epidemias, erros médicos, além de descobrirem circunstâncias e causas de morte através de análises médicas. E assim como acontece com qualquer outro gênero literário, o romance policial se sofisticou e se multiplicou. Claro que não mencionei muitos bons autores neste artigo para ele não ficar ainda mais longo.

Mas o romance policial é irresistível. Tanto que até o poeta Fernando Pessoa criou um detetive chamado Abilio Quaresma. Maurice Leblanc criou Arsène Lupin, o ladrão-cavalheiro. George Simenon, o comissário Jules Maigret. Rex Stout, o Nero Wolfe. No Brasil, Luís Fernando Veríssimo criou Ed Mort, Luiz Alfredo Garcia-Roza criou o delegado Espinosa e Rubem Fonseca o advogado Mandrake. Acredito que com o tempo as fronteiras dos dois subgeneros foram quase rompidas. Mas aprecio uma explicação de Alfred Hitchcock para o interesse e predominância do subgenero psicológico na Inglaterra vitoriana e eduardina. Ele dizia que isto acontecia por causa do sistema economico vigente na época.

“O divórcio era difícil de obter. Um homem que não conseguisse divorciar-se procuraria ver-se livre da mulher do modo mais sutil que lhe fosse possível. Hoje porém os crimes no seio da família são em menor número, pois o divórcio é acessivel. As pensões pagas aos conjuges e aos filhos são deduziveis dos impostos”, diz ele. Assim, ninguém precisou mais cometer crimes engenhosos que exigiam um monumental exercício de inteligência do investigador para descobrir os autores. E com isso, segundo Hitchcock, o subgenero psicológico perdeu uma de suas mais rendosas fontes. É uma teoria interessante. Mas ele não desapareceu totalmente, claro. Afinal, o mundo tem muitos psicopatas para praticar crimes, destes que tiram o sono dos detetives e esquentam as suas cabeças. E se você chegou até aqui e está perguntando o que o título tem a ver com tudo isto eu respondo que foi apenas uma homenagem a Raymond Chandler. Gosto muito deste conto dele.

 

14 de May de 2020by edilsonpereira
Crônicas

Miçangas de Xangô e charutos de Fidel

O melhor livro sobre a Revolução Russa talvez seja “Os dez dias que abalaram o mundo”, do americano John Reed. Um clássico. É uma reportagem feita no calor dos acontecimentos. Virou belo filme de três horas e vinte minutos dirigido e interpretado por Warren Beatty. “Reds” (vermelhos) lançado no Natal de 1981 faz trocadilho com Reed. Levou três Oscars, inclusive o de melhor diretor. É bacana. Eu tinha trinta anos quando o vi em 1982. Talvez por isso o filme sobre a Revolução Russa que mais me impressionou foi “Doctor Zhivago”. Tinha catorze anos em 1966 quando o vi.

Nesta idade a gente não é criança e tampouco adulto. Um turbilhão de novidades aparecem. O filme de David Lean lançado em dezembro de 1965 chegou ao Brasil em fevereiro de 1966. Ele parte do romance homônimo de Boris Pasternak de 1956. O filme foi meu primeiro encontro com Julie Christie, a Lara Antipova, papel cogitado para Sophia Loren e Jane Fonda. Ainda bem que não deu certo. Julie nasceu para ser a bela russa. Foi paixão à primeira vista. O filme com duração superior a três horas (havia intervalo) custou uma grana preta e nas primeiras semanas empacou.

Foi a música de Maurice Jarre (“Tema de Lara”, sucesso do ano) que inverteu a tendência. Depois as salas ficaram cheias. Tanto que o filme levou cinco prêmios da academia (trilha sonora, fotografia colorida, figurino, direção de arte e roteiro adaptado) e foi indicado em outras cinco categorias. Quando vi tudo era novidade. Revolução, comunista e russa gostosa. Nunca vira os campos russos brancos de neve (embora o filme fosse rodado na Espanha e cenas no Canadá). A Rússia cenográfica não era muito diferente da original do começo do século.

Não recordo de ter lido um romance inesquecível sobre a Revolução Russa como estes dois livros e filmes. Escrevo isto para concluir que nunca esperei ler um bom romance sobre a Revolução Cubana. Até porque quem poderia escrever sobre o episódio teria que ter participado dele. E as pessoas que participaram ou saíram atirando contra os guerrilheiros de Castro, como o cubano Guillermo Cabrera Infante ou ficaram na defensiva do regime como o colombiano Gabriel Garcia Marquez. Os dois teriam condições porque acompanharam aquilo.

O primeiro não quis falar coisa bonitas sobre homens que considerava gangsteres e dos quais se sentia perseguido. O segundo preferiu não tocar no assunto porque achava que Cuba já tinha problemas demais com os Estados Unidos. Assim ficou difícil. Marquez sabia que a história real era mais complicada e que um romance não abarcaria tudo. A revolução foi nacionalista mas a reação americana empurrou Cuba para os braços soviéticos. E depois disso foi muito tenso. Parecia não haver clima para alguém escrever uma história bacana sobre este momento da América Latina sem ser acusado de capacho de Fidel ou lacaio de Tio Sam.

Por isso me surpreendi ao ler “Colares de Xangô e Sapatos bicolores” de William Kennedy (lançado em 2012 nos Estados Unidos e em 2014 no Brasil, pela Biblioteca Azul, 424 páginas). Livro que acabei de reler na quarentena porque gostei. Achei uma bela, deliciosa e divertida narrativa sobre Cuba. Com elementos heroicos, loucos, gangsterismo, tiros, mortes e o sobrenatural que paira nos textos do escritor de Albany. O livro é a soma de três. O primeiro em Albany, em agosto de 1936, é um tocante conto de sete páginas sobre a infância de Daniel Quinn. O segundo uma novela de cento e quarenta e três páginas que se passa numa Havana conturbada a partir de doze de março de 1957.

O terceiro e mais longo, um romance de duzentos e cinquenta e oito páginas que transcorre num período de doze horas no dia seis de junho de 1968 em Albany. Este foi o dia em que Bob Kennedy, candidato a presidente pelo Partido Democrata, foi assassinado. Nas ruas explodem distúrbios provocados pelo movimento negro que luta por direitos civis. Os Estados Unidos pegam fogo. O livro foi escrito para ler as três partes, claro. Mas a segunda parte não me saiu da cabeça. O jornalista Daniel Quinn que deseja ser escritor aparece em Havana no bar El Floridita e numa noite só conhece Ernest Hemingway, que está mais doido que nunca. E uma bela burguesa local chamada Renata Suárez Otero, parecida com Ava Gardner e que além de estar envolvida com os revolucionários é chegada numa santeria, sincretismo religioso entre o catolicismo e rituais yorubá, equivalente a nossa macumba.

Daí o título do livro que também poderia ser “Miçangas de Xangô e Sapatos de duas cores”. A noite promete. Hemingway, para variar, arrebenta a cara de um tal Joe Cooney, o melro de Baltimore, que não estava fazendo nada além de cantar mal. Quinn se apaixona de imediato pela cubana fatal e ela vai ajudá-lo a encontrar Fidel Castro em Sierra Maestra. Foi para isso que ele foi lá. O ditador Fulgêncio Batista que tomou o poder através de um golpe militar em dez de março de 1952 para instaurar um governo corrupto e subordinado aos gangsteres americanos garantia que Fidel virou presunto. O ditador foi desmoralizado pelo jornalista americano Herbert Matthews, que entrevistou Fidel na mata.

O boato sobre a morte de Castro foi realimentado com a mesma tática que Jair Bolsonaro usa no Brasil hoje em dia. Mentir sempre. Quinn resolveu conferir, para desmoralizar o ditador, repetindo a epopeia de seu avô na luta pela independência de Cuba, que se livrou do jugo espanhol para ser quintal dos Estados Unidos. E nesta aventura na ilha ele se vê no meio de uma tentativa de assassinato de Batista e de quebra, casa-se com Renata numa sessão de santeria. Sem contar que no final de tudo, entrevista Fidel Castro, enquanto os dois fumam charutos. O verdadeiro espírito latino-americano com toque africano está todo lá. Melhor impossível.

Acho que Kennedy poderia ter se resumido a segunda parte e a transformado num livro com maior musculatura. Ele discorre com tanta naturalidade e algumas vezes humor que fica claro que se assim quisesse assim faria. O Caribe não é desconhecido para ele. Embora seja de Albany, foi gerente editorial do San Juan Star, de Porto Rico. Conhecia Gabriel Garcia Marquez, que o levou a Cuba para se encontrar com Fidel Castro. Ele sabia onde estava pisando e sabia como ir em frente. De qualquer forma, ninguém chegou mais perto de escrever o mais interessante romance sobre a Revolução Cubana. Pelo menos que eu saiba.

 

5 de May de 2020by edilsonpereira
Crônicas

A paixão pelo menor de todos os felinos

gato-CharlesBukowski

Eu nunca fui chegado a gatos. E tinha pavor de gatos pretos. Influência dos gibis e filmes de horror. Assim como não passava embaixo de escadas. A vida nunca foi fácil e não queria perder tempo e energia desafiando a velha sabedoria ou crendices populares. No entanto, em 1978 fui morar na Vila Madalena em São Paulo numa casa de amigos em que um deles tinha um gato. Gato preto ainda por cima. E que dormia no nosso quarto. Luís gostava do Oscar. Oscar era o gato. Como paguei adiantado e não sabia da existência do gato preto, não podia sair correndo.

O jeito foi domar meus temores. Quando chegou o inverno, eu tinha pouca coberta, mas uma noite gelada senti meus pés aquecidos. Um calor gostoso. Quando fui conferir, era Oscar enrolado neles. Como não acontecera nada ruim até aquela noite, ignorei a presença do Oscar e voltei a dormir com os pés aquecidos. Mudamos tempo depois para um sobrado maior no mesmo bairro, onde cada um de nos tinha um quarto. Oscar foi junto. Sumiu o temor com os gatos de maneira geral e com gatos pretos em particular. Mas não tive gatos depois disso, embora vez e outra tivesse vontade.

O gato é um bicho limpo. É animal doméstico. Mas gosto de cães. Tenho uma cocker spaniel há catorze anos. Que na realidade foi comprada pela minha ex-mulher. Que queria levar o animal para a praia. Mas o bicho quis voltar para Curitiba. E a escolha da cocker latiu mais alto. Por que a gente gosta de cães? É um bicho simples que ama todo mundo. Tem o dom do perdão. Parece que o cachorro tem a índole que Jesus pediu para todo humano ter. Claro que Jesus não pediu para nenhum humano sair mordendo as pessoas. Mas estamos falando das boas coisas.

Os gatos, todos sabem, não são assim. São caprichosos. São astutos. Os gatos são chatos. Tanto que um jornalista e escritor inglês chamado Jon Ronson garante que os psicopatas preferem os cães. Está no seu livro “O teste do psicopata”. Ele diz que os psicopatas preferem animais obedientes. Como o cão. E tinha um bom exemplo. Adolf Hitler desprezava gatos. Gatos e judeus. Nesta quarentena encontrei um monte de fotos de escritores com gatos e me interessei pelo assunto. Fui pesquisar se muitos escritores gostavam de gatos. Levei um susto. A lista de escritores que gostavam de gatos é enorme.

A explicação seria a seguinte: os gatos, como os escritores, são criaturas voluntariosas, que não gostam de ser controladas. A maioria dos autores é introvertida e os gatos se encaixam com perfeição no mundo deles. Como disse a autora americana de ficção científica, Andre Norton (o nome era Alice Mary, mas usava nome de homem), “talvez seja porque os gatos não vivem de acordo com os padrões humanos, não se adaptam ao comportamento prescrito, que eles estão tão unidos às pessoas criativas”. Gostei da tese dela.

Mas a verdade é que muitos escritores tinham afeto profundo pelos felinos. Eu reuni alguns deles. A começar por Isaac Newton, escritor e cientista que elaborou a lei da gravidade. Ele gostava tanto de gatos que inventou uma porta giratória para o uso de seus bichanos. Outro que tinha relação especial com os gatos era Edgar Allan Poe. O autor de “O gato preto” chegou a afirmar que “gostaria de poder escrever tão misteriosamente quanto um gato”. Ele tinha uma gata chamada Cattarina que o vigiava enquanto escrevia. Provavelmente dava alguns conselhos. Assim, até eu, né Edgar?

Conhecido por ser o divulgador de Allan Poe na Europa, o poeta francês Charles Baudelaire escreveu que os gatos eram “seráficos”, ou seja, místicos, anjos que estão na primeira posição na hierarquia angelical. Baudelaire os considerava tão sutis e harmoniosos quanto os anjos. E como muitas pessoas que gostam de gatos, ele não gostava de cães. A um amigo reclamou em carta que não estava mais conseguindo viver com a sua amante Jeanne que trouxe os cães dela para casa e afugentou o gato dele. Reação do poeta: “Quelle horreur! Quelle horreur!”

Mais um francês amante da gataria. Alexandre Dumas, autor de “Os três mosqueteiros” e “O Conde de Monte Cristo”. Ele se lembrava do animal de estimação da família, Mysouff, a quem a mãe amava muito: “Ela costumava chamá-lo de Barômetro. Mysouff marca meu bom e mau tempo”, dizia a velha. O gato esperava ele como um relógio quando chegava em casa do trabalho. Mysouff sabia quando Dumas terminaria o trabalho e acompanhava o mestre nas caminhadas para o escritório.

Mais tarde, Dumas foi dono de Le Docteur e Mysouff II. Este último era o favorito, embora dizimasse toda variedade de pássaros exóticos de Dumas cultivava. O escritor disse: “O gato, um aristocrata, merece nossa estima, enquanto o cachorro é apenas um tipo escorbuto que conseguiu sua posição com baixas lisonjas”. Tadinho dos cães. Ainda bem que eles são mestres na arte do perdão. Ô Dumas, não precisa ofender os cães para agradar os gatos. Que coisa feia! Vamos em frente.

O inglês Charles Dickens tinha um gato chamado Bob. Que morreu em 1862. O escritor tirou a patinha do defunto e anexou a um abridor de cartas, no qual, escreveu, “CD In Memory of Bob 1862”. Em seguida lamentou: “Que presente maior do que o amor de um gato?”. No outro lado do Atlântico, Mark Twain concordaria. As fotos dele com gatos não deixam dúvidas. Gostava dos bichanos. Quando seu gato preto chamado Bambino fugiu de casa, o escritor publicou um anúncio no New York American oferecendo recompensa de cinco dólares para quem encontrasse o animal e devolvesse em sua casa na 21 Fifth Avenue, em Nova York. Ele descreveu o bicho como “grande e intensamente preto, tem uma franja fraca de cabelos brancos no peito e que não era fácil de encontrar na luz natural”. Não consegui descobrir se ele encontrou o felino.

Atravessando o Atlântico de novo para Londres, encontramos Herbert George Wells, mais conhecido por H. G. Wells, autor de “A guerra dos mundos”, “O homem invisível” e “A máquina do tempo”. Ele tinha um gato que chamava cerimoniosamente de Sr. Peter Wells. E que de acordo com o escritor tinha o hábito de se levantar da cadeira em que estava e saia da sala como forma de protesto, se um hóspede começasse a falar muito ou muito alto. “O gato, que é um animal solitário, tem uma mente única e segue seu caminho sozinho, mas o cachorro, como seu dono, está sempre com a mente confusa”, disse o escritor. Mais um que não sabe elogiar o gato sem ofender os cães.

Vamos agora falar dele. O machão. Fodão. Mas que gostava de um gatinho. Ernest Hemingway. Ele pegou gosto pelos bichanos quando vivia na Finca Vigia, sua casa em Cuba. Numa das viagens o escritor ganhou um gato de seis dedos, também conhecido por polidáctilo. Ele deu o nome de Snowball. E gostou tanto que em 1931, quando se mudou para a casa em Key West, na Flórida, levou o gato. Tinha por ele grande afeto. “Um gato tem absoluta honestidade emocional. Os seres humanos, por um motivo ou outro, podem esconder seus sentimentos. Um gato, não”. Ele chegou a ter 23 gatos. Os gatos de seis dedos passaram a ser conhecidos como Gatos de Hemingway. Visitantes testemunharam que a casa do escritor em Key West que se transformou em museu tem hoje mais cerca de 50 descendentes de Snowball.

O inglês Aldous Huxley escreveu sobre tudo e ficou famoso por dois livros: um deles é “Admirável Mundo Novo”, que virou clássico. Mas os maconheiros e hippies dos anos 60 adoravam mesmo o livro sobre experiências do autor com substâncias lisérgicas ao qual deu o nome de “Portas da percepção”. Este livro é responsável pela escolha do nome da banda The Doors. Mas como o assunto é gatos, Huxley disse: “Se você quer ser um romancista psicológico e escrever sobre seres humanos, a melhor coisa a fazer é manter um par de gatos”. O conselho está registrado para quem está interessado em ser um romancista psicológico, embora eu não entenda porque tenha que ser um par.

O amor do poeta William Butler Yeats pelos gatos pode ser encontrado em poemas como “O Gato e a Lua”, onde usa a imagem de um gato para se representar e a imagem da lua para representar sua musa, Maude Gonne, uma dona da sociedade londrina, feminista e atriz que inspirou o poeta ao longo da vida. O poema faz referência ao gato de Gonne chamado Minnaloushe, que senta e olha para a lua que muda. Yeats metaforicamente se transforma no gato que anseia por amor da dona indiferente a ele. O poeta felino comovente se pergunta se Gonne mudará de idéia. Maude Gonne nunca concordou em se casar com ele, apesar de ele pedir a mão dela apenas quatro vezes.

Outro poeta gatuno é T. S. Eliot. Escreveu muitos poemas sobre gatos, compilando em 1939 quinze deles no “Livro dos Gatos Práticos do Velho Possum”. A coleção de quinze poemas caprichosos dedicados aos felinos abordava a psicologia, pecularidades e exentricidades de um gato. Claro que ele tinha gato. Chamava-se Jellylorum. E não podemos deixar de falar de Andrew Lloyd Webber, também conhecido por Barão Lloyd-Webber Kt, que musicou os poemas de T. S. Eliot e levou os nomes Old Deuteronomy, Rum Tum Tugger e Mr. Mistoffelees para a Broadway, onde ficaram dezoito anos em cartaz como parte do musical Cats.

Poeta gosta mesmo de gatos. Mais dois. William Carlos Williams trabalhou como médico pediatra para complementar a carreira de escritor, que rendeu o Prêmio Nacional do Livro de Poesia de 1949 e o Prêmio Pulitzer de 1963, este póstumo. O estilo direto captava a essência das pequenas coisas do cotidiano. O gato foi usado para compor uma cena simples no poema “Poema (como o gato)”.

Mais uma. Elizabeth Bishop foi uma grande poetisa norte-americana. Um belo mês de novembro chegou de navio em Santos para ficar duas semanas. Ela gostou do país e ficou mais de vinte anos. Bishop conheceu a arquiteta e urbanista Lota de Macedo Soares, as duas se apaixonaram e Bishop foi morar no Rio de Janeiro, depois nos arredores de Petrópolis e finalmente em Ouro Preto. Além de gatas, Bishop gostava de gatos. No segundo caso, felinos. Tanto que escreveu uma canção de ninar para seu gato americano, Minnow, e outro poema sobre seu gato brasileiro, Tobias, que ficava em pânico durante tempestades com raios.

Todo mundo sabe que Raymond Chandler teve grande influência no romance policial moderno. O estilo noir recheado de homens frios e garotas quentes. Felinas. Sua criação o detetive Philip Marlowe é protótipo do detevive do romance policial moderno. E seus livros “O sono eterno” e “O longo adeus” são clássicos do gênero. Mas atrás deste escritor que forjava personagens durões estava um amante dos gatos. Sua gata Taki dava prazer mas também enchia o saco. Em carta a um amigo ele se queixou: “Nossa gata está ficando positivamente tirânica. Se ela se encontra sozinha em qualquer lugar, emite gritos de gelar o sangue até que alguém venha correndo. Ela dorme em uma mesa na varanda de serviço e agora exige ser levantada para cima e para baixo. Ela toma leite morno por volta das oito horas da noite. E por volta das 19h30 começa a gritar”. Sem paciência não há amor que resista, Raymond! Parece que não sabe!

Vamos em frente. Patricia Highsmith não tinha reputação de ser amigável (“Minha imaginação funciona melhor quando não preciso falar com as pessoas”). Mas a excelente autora de “O talentoso Ripley” e “Estranhos no trem” encontrou uma maneira perfeita para a imaginação funcionar. A companhia de seus gatos. Ela fazia tudo com eles – escrevia ao lado deles, comia com eles e até dormia junto deles. Era uma suruba litero-felina. Ela os manteve ao seu lado toda a vida até morrer em sua casa em Locarno, Suíça, em 1995.

Embora botasse o pé na estrada, Jack Kerouac amava gatos. Ainda mais Tyke, seu gatinho, cuja morte infeliz escreveu com detalhes em “Big Sur”. O argentino Jorge Luís Borges era outro que tinha gato. Era Beppo, em homenagem a poema de Lord Byron. E o patrício Julio Cortazar tinha um gato chamado Theodor W. Adorno. Ele foi outro que escreveu sobre seu gato, neste caso no livro “A volta ao dia em oitenta mundos”.

Claro que nesta lista não poderia faltar o velho safado. Charles Bukowski tinha um gato de uma orelha chamado Butch Van Gogh Artaud Bukowski. O nome mais comprido que encontrei até agora. Ele disse: “Ter um bando de gatos por perto é bom. Se você está se sentindo mal, basta olhar para os gatos, se sentirá melhor, porque eles sabem que tudo é exatamente como é. Não há nada para se animar. Eles apenas sabem”. Outro velho doido que gostava de gatos era aquele que deu um tiro na cabeça da mulher no México pensando em acertar a maçã que ela equilibrava na cabeça. Ele mesmo: William Seward Burroughs.

Bill Burroughs é conhecido por escritos selvagens induzidos por drogas, mas também tinha lados suaves – quando se tratava de gatos. Ele escreveu uma novela autobiográfica, “The Cat Inside”, sobre os gatos que possuiu ao longo da vida. A última anotação no diário antes de morrer se referia ao puro amor que tinha por seus quatro gatos: “A única coisa que pode resolver um conflito é o amor, como senti por Fletch e Ruski, Spooner e Calico. Amor puro. O que sinto pelos meus gatos presentes e passados? Ame. O que é isso? Analgésico mais natural que existe. AMOR”. Depois dessa é bom parar aqui. Mas a lista de autores que tinham afeto pelos felinos não termina. É longa. Muito mais longa que este texto.

 

3 de May de 2020by edilsonpereira

EDILSON PEREIRA

Edilson Pereira é escritor, dramaturgo e jornalista.

Popular Posts

Os anônimos cantores de rua da cidade

Os anônimos cantores de rua da cidade

LANÇAMENTO 2 EM 1 DO JORNALISTA EDILSON PEREIRA

LANÇAMENTO 2 EM 1 DO JORNALISTA EDILSON PEREIRA

Quando os ombros seguravam as calças

Quando os ombros seguravam as calças

CRÍTICA: “ESFÍNCTER”, DE EDILSON PEREIRA

CRÍTICA: “ESFÍNCTER”, DE EDILSON PEREIRA

Archives

  • January 2021
  • December 2020
  • November 2020
  • October 2020
  • September 2020
  • August 2020
  • July 2020
  • June 2020
  • May 2020
  • April 2020
  • March 2020
  • September 2019
  • March 2019
  • September 2018
  • July 2018
  • June 2018
  • April 2018
  • January 2018
  • December 2017
  • November 2017
  • October 2017
  • September 2017
  • August 2017
  • July 2017
  • June 2017
  • May 2017
  • April 2017
  • March 2017
  • February 2017
  • January 2017
  • December 2016
  • November 2016
  • October 2016
  • September 2016
  • August 2016
  • July 2016
  • June 2016
  • May 2016
  • April 2016
  • March 2016
  • April 2015
  • January 2015
  • March 2014
  • February 2014
  • June 2013
  • April 2013
  • December 2012

Categories

  • Crônicas
  • Notícias
  • Sem categoria

Tags

angustiado babando de ódio Beatles Brasília Budapeste Buenos Aires calcinha capitalista cerveja circo Copacabana Coringa Dalton Trevisan diplomacia edilsonpereira Errol Flynn expresso futebol James Joyce Jeca Tatu litoral Londrina Madrugada maluco marido Maringá Mbube meretrizes motel Napoleão narrativa Natal pai de santo Paris pesadelo porteiro Péricles Eugênio da Silva Ramos Rick Blaine Sexy sorriso Taquara telefone traficante vaidade Zé do Caixão

 “Existem só dois tipos de soldados aqui. Os mortos e os que vão morrer. Os russos estão por todos os lados. Eles vão descer como uma onda humana sobre a Alemanha. Mais cedo do que vocês esperam. Corram para a Espanha enquanto é tempo.” (O português dos olhos verdes)

© 2016 copyright EDILSON PEREIRA // All rights reserved // Privacy Policy