História curiosa entre muitas da apropriação de produtos culturais de nações periféricas por nações industriais é a da música sul-africana Mbube (leão em zulu), composta quase por acaso por Solomon Linda do Solomon Linda & The Evening Birds, no começo de 1939. Linda e seu grupo gravaram uma canção num lado de um disco 78 rotações no Gallo Studios em Joanesburgo (único da África) e o produtor Griffith Motsieloa alertou que precisava outra para o lado B. Linda não tinha. Também não tinha tempo. E improvisou uma canção de infância. Quando pequeno pastor ele temia a presença de leões. E cantava algo sem nexo cujo objetivo era espantar o eventual leão: ‘Ei leão, você é um leão’. Em zulu ficava legal. No fim da gravação, sapecou uma frase: ‘Na poderosa selva, o leão dorme esta noite’.
Solomon Linda veio do vale Msinga para a cidade grande, ser cantor. Morou em favelas, pegou trabalho braçal, acabou morrendo na miséria em 1962, aos 53 anos. A sua canção se tornou talvez o maior produto musical da África para o resto do mundo. Contando assim dá a impressão de que Linda era um Zé Ruela. Não era. Ele sabia o que fazia. Se não foi reconhecido em vida e devidamente remunerado são outros quinhentos. Mas soube incluir uma série de inovações na tradição zulu. Botou voz principal em falsete, a textura vocal feminina na voz de homem, como os castrati do século 16. O grupo dele foi o primeiro a usar ternos listrados numa demonstração de que podiam ser pobres, mas tinham concepção urbana e sofisticada. Linda também foi cantor de protesto a refletir a humilhação crescente dos negros em seu país. Linda continuou pobre e cantando até morrer. Mas Mbube teria bela jornada pela frente.
Embora descendesse de família rica de Nova York, Seeger estava na pior em Greenwich Village nesta época, com mulher e dois filhos. Ele deixara Havard para pegar a estrada com um banjo e pesquisar música folclórica americana. Pois bem! Quando ouviu Mbube ele gostou, mas empacou na expressão zulu que soava para ele algo como uyembue. Ele achou que os caras queriam dizer wimoweh. Se ele achou estava achado. Botou banjo e elementos folks na canção para torná-la menos crua aos ouvidos americanos, batizou a música de Wimoweh e correu para o abraço. A música estourou nos EUA em 1952. Seeger virou gente grande. Ganhou dinheiro e prestigio, mas, de repente, sumiu. O problema é quando Seeger pegou estrada para suas pesquisas, ele se enturmou com o pessoal de esquerda. Esse pessoal caiu no período da caça às bruxas comunistas e o entregou como cantor de esquerda. O dinheiro ganho com Mbube foi para a fita e Seeger voltou às vacas magras.
A briga pelos direitos começou em 1989 em território americano. O grupo Richmond, que gravou a primeira versão americana, e o maestro George David Weiss foram para o pau. Um juiz de Nova York sentenciou que a versão de Weiss não tinha nada a ver com a original africana. Ele ganhou a parada. Os direitos da versão americana eram dele. No entanto, uma centenária lei inglesa sobre direitos autorais diz que os direitos de uma canção revertem para a família do autor 25 anos depois de sua morte. Baseada nesta lei, a Suprema Corte da África do Sul designou um promotor para recuperar os direitos para a família de Linda, da qual restam ainda três filhas – Delphi, Elizabeth e Philda – morando numa favela de Soweto, depois que a mais velha morreu de Aids em 2002. A Walt Disney, uma das maiores beneficiadas com a música, está sendo processada. Para não dizer que não receberam nada até agora, Seeger teria mandado um cheque de US$ 1 mil para as donas. Elas receberam ainda mais US$ 15 mil de outras fontes.
Depois de 18 anos sem nada para identificar o lugar em que Solomon Linda foi enterrado, as filhas conseguiram botar uma lápide no túmulo do pai. Linda, depois de adoecer em 1959, morreu em outubro de 1962 pobre e feliz porque sua música era conhecida no mundo inteiro. Sobre direitos autorais ele dizia: ‘Nem sabia que devia receber alguma coisa pela música’. Afinal, tinha vendido por US$ 2. É assim que funciona. Claro que todos os outros envolvidos nesta história, vivos ou mortos, ficaram milionários. Estes leões também dormem. Mas não de touca.
Publicado originalmente em O Estado do Paraná no dia 11 de abril de 2010.